“Dois Córregos – Verdades Submersas no Tempo” é um filme brasileiro de 1999, do gênero drama, dirigido por Carlos Reichenbach e estrelado por Beth Goulart, Carlos Alberto Riccelli, Vanessa Goulart, Luciana Brasil e Ingra Liberato.
Em meio à repressão imposta pela ditadura militar vivem Ana Paula (Vanessa Goulart) e Lydia (Luciana Brasil), duas adolescentes burguesas e inexperientes, que passam uma temporada no campo. Lá, elas conhecem Tereza (Ingra Liberato) e convivem por um fim de semana prolongado com o tio de uma delas, Hermes (Carlos Alberto Riccelli), um homem misterioso, que está clandestino no país.
"Dois Córregos" trabalha com o assunto mais cinematográfico e ao mesmo tempo mais difícil de ser capturado em imagens: a memória sentimental. "Verdades Submersas no Tempo" é o subtítulo significativo do filme, que se dedica inteiramente a essa abstração, avessa à expressão verbal, que é a saudade.
Nesse terreno, um acerto que não se destrua pela pieguice ou pelo didatismo vale um filme inteiro. "Dois Córregos" é todo permeado por esses acertos e, por isso, apesar dos ocasionais escorregões, um grande filme.
Uma mulher madura retorna ao sítio de sua infância para expulsar os grileiros e tomar posse da casa agora arruinada. Ao mirar uma nesga de rio entre as árvores -uma imagem simples, nem sequer bonita- seus olhos de repente se enchem de água. Antes do "flashback" de sua adolescência, antes de qualquer fala, o espectador já sabe de tudo: da epifania ocorrida no passado, da falta no presente, da cicatriz que ficou para sempre.
Já conhecemos há tempos a intimidade do diretor Carlos Reichenbach, especialmente burilada em "Alma Corsária", com a água e a música, capazes de dizer muito sem a ajuda do verbo. Em "Dois Córregos", os rios, açudes, várzeas, o mar e a chuva são o caldo em que passado e presente se fundem ao dedilhado líquido do piano.
Sempre um poderoso piano, aqui como em "Alma Corsária", negro e de cauda, ocupando boa parte do quadro em largas sequências, onde a execução de peças musicais (César Franck, principalmente) se torna o assunto essencial. Daí a necessidade de se encontrar um ator que realmente tocasse piano - no caso, a jovem Luciana Brasil.
O herói do filme -um refugiado político escondido no sítio, no pior período do regime militar- parece entender pouco de política, mas sabe tudo de música. As duas adolescentes (uma exímia pianista, filha de um general, e a filha do dono do sítio) e a garota mais velha (irmã de criação desta), que passam as férias ali, sabem apenas que o forasteiro sabe alguma coisa, e todas as três se apaixonam por ele. Como num outro grande filme, "O Rio" (1950), de Jean Renoir, intuem no forasteiro, pela força da água e da música, os mistérios do sexo.
Em "O Rio", como em "Dois Córregos", o herói sofre a dor de uma grande perda. Naquele filme, um soldado perdera a perna na guerra; neste, o guerrilheiro teve de se separar de seus dois filhos, cujos rostos agora não consegue recordar (isto é contado em planos antológicos de duas crianças com os rostos apagados pelo excesso de luz). As adolescentes, em ambos os filmes, se apaixonam pela dor de seus homens e, com eles, aprendem a perder - e a sobreviver.
Filme de formação por excelência, "Dois Córregos" focaliza um momento especialmente dolorido do Brasil, obrigado a viver em segredo, mas um momento também em que as experiências tinham a intensidade do nascimento e da morte. E Reichenbach acertou ao fazer a intensidade emergir da contenção.
Beth Goulart, em silêncio com os olhos rasos d'água, Ingra Liberato muda sob o chuveiro, a jovem Vanessa Goulart calada e com os braços sempre cruzados sobre os seios fartos são imagens de extraordinária eloquência sobre um estado de espírito indizível.
Mas, sobretudo Carlos Alberto Riccelli, o refugiado político, alcançou em "Dois Córregos", com o trabalho de contenção, o auge de sua carreira. Suas falas breves e roucas, suas carícias interrompidas com as meninas, seus olhos erradios exprimem à perfeição o tormento da saudade dos filhos e o desejo irrefreável de amar uma mulher que é todas e nenhuma. Riccelli, em "Dois Córregos", é o retrato de um Brasil perdido, à deriva entre dois ou mais rios, um país que se ama e se quer lembrar, mas que perdeu o perfil.